O importante da educação não é apenas formar um mercado de trabalho, mas formar uma nação, com gente capaz de pensar. (José Arthur Giannotti)




quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A mediação da leitura literária na escola: uma lacuna a ser preenchida

Maria de Lourdes Teles
Professora Mestre pela PUC de São Paulo

RESUMO
Neste artigo, busca-se uma reflexão acerca do conflito entre o que a escola propõe em seus planos de ensino e o que realmente é desenvolvido em aulas de leitura literária,  no ensino básico. De acordo com Calvino (1003, p.9-16), é papel da escola despertar o aluno para a leitura de obras clássicas. Em vista disso, este estudo parte do pressuposto teórico de que uma das funções do texto literário é a de promover o conhecimento estético, concebido por meio do prazer da descoberta do real e do poder imagético que esse tipo de texto desencadeia no leitor, a fim de analisar o papel da escola e do professor como mediador da leitura literária na formação do aluno.

PALAVRAS-CHAVE:
Ensino de Literatura - Leitura literária – Leitura mediada.

A literatura como forma de representação é considerada uma das sete formas de manifestação artística, ao lado da pintura, dança, escultura, arquitetura, música e cinema. A principal função do texto literário é promover o conhecimento estético, concebido por meio do prazer da descoberta do real e do poder imagético que esse tipo de texto desencadeia no leitor. Para Barbosa (2003, p.87) “é possível chegar ao conhecimento genuíno veiculado pelo texto literário”, logo, o valor da palavra como expressão do eu e do mundo pode (e deve) ser ensinado através da leitura literária
O discurso literário difere dos demais atos discursivos por ser um trabalho intencionalmente orientado, cujo resultado.processo de criação se dá por meio da palavra que se torna responsável pelas sensações causadas ao leitor. A força do texto literário está nas várias possibilidades de leitura que o indivíduo adquire no ato da leitura e no jogo ambíguo das palavras que remete a várias interpretações e as variadas leituras.
A literatura promove o saber e atua sobre o  leitor como uma atividade crítica e reflexiva, permitindo a ele uma transformação libertadora e subversiva. Segundo Saraiva (2006, p. 38), “[...] o texto literário interfere na vida dos indivíduos e pode transformar-se em uma experiência de auto-revelação ou de uma visão renovada que auxilia o sujeito a ordenar seu caos interior”. Para a autora, o poder de transformação da literatura é bastante notório, justamente por estabelecer esse diálogo com o leitor e por fazer este (re)conhecer ao outro e a si mesmo..
Todavia, é difícil entender que a função específica do texto literário seja ignorada no contexto escolar e o seu ensino seja conduzido de forma tão equivocada. Isso acontece porque a leitura literária na escola se baseia na superficialidade de estudos meramente lingüísticos e descontextualizados. Os educadores se esquecem de uma forma de conhecimento que é adquirida por meio de uma educação estética.
Os desencontros não param por aí. O despreparo do professor para o trabalho com o texto literário é um outro, senão o maior equívoco da escola em relação à leitura literária, que deveria privilegiar critérios estéticos, mas não o faz. A leitura de grandes obras literárias promove o conhecimento por meio da fruição. O texto da fruição[1], de acordo com Barthes (2003, p.21-22), é “aquele capaz de desconfortar e desequilibrar as bases históricas, culturais e psicológicas do leitor e a consistência de seus gostos, de seus valores e até de suas lembranças.” Bloom (2001, p.17), também afirma que esse tipo de texto tem a função “de preparar para uma transformação no indivíduo de caráter universal.” A pergunta é como a escola atende a essa finalidade e qual prática utiliza para atingir o seu objetivo?
É senso comum entre os especialistas em educação que a valorização do conhecimento e a importância da formação humanista do aluno não podem ser jamais esquecidas, apesar desse indivíduo estar inserido em uma sociedade que prefere viver o prazer imediato da informação, por meio do consumo de bens materiais e culturais a adquirir conhecimento através da leitura de grandes obras. Em combate a essa cultura consumista, a leitura é, segundo Matos (2006, p.16), “a prática mais nobre da educação humanista, provedora de paciência e de consciência, pela sua dimensão ética”. A escola parece, igualmente, manter, em seus planos de ensino essa mesma expectativa em relação a formação de seus alunos.
Contudo, o seu maior desafio hoje é suscitar nas crianças e nos adolescentes o prazer pela leitura. Para Calvino (1003, p.9-16), a escola deve despertar o aluno para a leitura de obras clássicas. Essa é uma das funções, entre tantas outras, porém, é preciso pensar em uma metodologia que privilegie atividades prazerosas de leitura dos clássicos, as quais podem ser enriquecidas pelo debate e pelo diálogo com outras leituras realizadas pelo grupo. Essa experiência deve ser mediada pelo professor de língua e literatura, que é, sem dúvida, uma figura importante neste contexto, não podendo ser considerado apenas um hábil professor de língua e literatura, mas alguém que precisa compartilhar com o grupo a leitura desses textos. Dessa forma, a escola cria, no coletivo, uma oportunidade de o indivíduo estabelecer uma relação prazerosa e inesquecível com a obra literária.
Para ilustrar tais reflexões, será analisado a seguir o poema Para pintar o retrato de um pássaro, de Jacques Prévert, sugerido em uma proposta de leitura de um livro didático de língua portuguesa. O poema foi escrito em uma única estrofe e composto de versos livres e brancos.
PARA PINTAR O RETRATO DE UM PÁSSARO

Jacques Prévert

 

Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer...
Às vezes o pássaro chega logo mas pode ser também
que leve muitos anos
a pressa ou a lentidão do pássaro
nada tendo a ver 
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
Se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.

Como anuncia o próprio título e conforme se constata por meio do vocábulo “pintar”, o poema intui um diálogo com outra forma de manifestação artística, a pintura, O tom da linguagem é descritivo, em cada verso o leitor vai percebendo as etapas da criação artística e, ao final, tem o quadro como resultado desse processo de criação.
Observa-se que, internamente, a relação sintática entre os versos se constrói por meio dos vocábulos “primeiro”, “depois”, “quando” e “então”, os quais estabelecem coesão do ponto de vista gramatical.
A voz do poeta é explícita, ele utiliza a forma imperativa para se dirigir diretamente ao leitor, que é instruído sobre as etapas de produção artística, e convoca-o como um (co)laborador desse processo de criação, ou seja, é convidado a “colocar a mão na massa”. É dessa forma que o poeta promove o conhecimento do fazer artístico, que se estabelece na relação intertextual do poema com a pintura.
O quadro, resultado desse processo, é fictício, assim como o texto literário, pois pintura e literatura constituem uma representação da realidade dos fatos que são ali apresentados. O poeta Mário Quintana, em O retrato de Eurídice, diz que “se tivesse o dom da pintura, seria um pintor lírico”, retomando o conceito de mimese de Aristóteles. Ele afirma que o trabalho de criação artística não se limita apenas a uma “fotografia” da realidade, mas a uma forma de representação dessa realidade.
Recorrendo a uma das sete formas de manifestação artística – a pintura - Jacques Prévert descreve o processo de concepção artística em dois planos que se entrelaçam. No primeiro, o poeta verbaliza as etapas da pintura de um quadro, por meio da linguagem poética, que é representada por versos, repetições e imagens. O leitor, por sua vez, concretiza visualmente, no segundo plano, o objeto “capturado” pelo pintor, que é ali representado pela imagem do pássaro dentro da gaiola. A aproximação do objeto com o real ocorre quando o artista apaga cada uma de todas as grades dessa gaiola, restando-lhe apenas o pássaro que é a imagem mais fiel de seu objeto.
Horácio, poeta latino do século I, estabeleceu relação da pintura com a poesia, visto que as duas se aproximam muito pela forma de representação e são, portanto, consideradas artes miméticas. Jacques Prévert busca essa mesma relação ao “pintar” um quadro em seu poema., no entanto, a imagem não pode substituir o ser. O poeta busca por meio da experiência sensorial (audição, visão e tato) revelar a essência de seu objeto que, no texto, é representada pelo “canto do pássaro”, pela “poeira do sol”, “pela frescura do vento”, pelo “calor do verão” e pelo “barulho dos insetos”.Esses elementos, os quais fazem parte da “paisagem” do quadro, só podem ser captados pelos sentidos e constituem um verdadeiro desafio tanto para o pintor quanto para o leitor,
Para o poeta latino, a poesia se caracteriza, essencialmente, por sua natureza imagética “ut pictura poesis”, assim como se pode observar no poema de Jacques Prévert,  nele é possível realizar atividades de leitura com o objetivo de levar o aluno a estabelecer essa mesma relação dialógica entre as duas formas de manifestação artística e a compreender os elementos lingüísticos imagéticos que devem despertar a sua sensibilidade de leitor. Mas, o contato que o aluno tem com a obra literária, na escola, é sistemático. A forma como ocorre a mediação com textos que privilegiam a fruição estética, os clássicos da literatura, contribui para que o estudante distancie cada vez mais do objetivo de uma leitura que leve o indivíduo ao conhecimento. O professor, muitas vezes alheio ao seu papel de leitor crítico e conhecedor dos problemas que envolvem o ensino da leitura literária, é submetido aos manuais preparados pelas editoras e à proposta curricular de órgãos oficiais da educação municipal e estadual, que impõem leituras de clássicos sem a devida contextualização histórica dos estilos de época.
Pode-se dizer que a tão sonhada leitura “solitária”, espontânea, não advém de um ensino mais ou menos tradicional, mas do modo como os clássicos da literatura nacional e universal são introduzidos no ambiente escolar, não devendo esquecer-se de que é possível desenvolver a leitura prazerosa já nas séries iniciais, utilizando adaptações desses mesmos clássicos, a fim de que o aluno conheça as obras, mesmo que adequada à sua linguagem. O ensino médio corresponde à última etapa de um processo em que o leitor já deveria ter condições de atuar como sujeito de sua leitura e também já apresentar um maior domínio da linguagem literária., mas isso, infelizmente, não acontece,
Os impasses entre escola e leitura literária precisam ser, urgentemente, resolvidos; caso contrário, a relação do aluno com o texto literário tende a se tornar cada vez mais conflituosa e distante.

Referências Bibliográficas

BARBOSA, J. A. A literatura como conhecimento: leitura e releituras. In: A Biblioteca Imaginária. 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
BARTHES, R. O prazer do texto. Trad. J. Ginsburg. São Paulo: Perspectiva, 1993.
BLOOM, H. Por que ler? In: Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
CALVINO, I. Por que ler os clássicos. In:_________ Por que ler os clássicos, São Paulo. Companhia das Ledtras, 1993.
HORÁCIO, A arte poética. Lisboa: Clássica Editora, s/d.
MATOS, O. Democracia midiática e República cultural. In: Discretas experiências – reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo. São Paulo: Nova Alexandria, 2006.
QUINTANA, M. Da preguiça como método de trabalho. Rio de Janeiro: Globo, 1987, p.93-4.
SARAIVA, Juracy Assmann. Por que e como ler textos literários. In: SARAIVA,
Juracy Assmann; MÜGGE, Ernani. [et al] Literatura na escola: propostas para o
Ensino Fundamental. Porto Alegre: Artimed, 2006.


[1] Barthes considera dois tipos de texto: o do prazer, aquele que contenta, provoca euforia e vem da cultura, sem romper com ela; o da fruição, aquele que põe em estado de perda e desconforta (O prazer do texto, 1977, p.21-22)

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